Sou a maçã de Galileu.
A que pra Branca de Neve a bruxa deu...
Sou a maçã.
Que o mundo esqueceu.
“Depois do domingo de páscoa, segunda é o dia.”. Isso é Fellini. Não o cineasta, mas a banda paulista dos anos 80. A ressurreição. Ressurgir. Uma nova vida. Acordei mal humorado sabido de que não seria um dia perfeito. Afinal nada é perfeito. Na sexta feira, por coincidência, morri. Não sei por onde andei até hoje, domingo, mas sei que é hoje o dia da ressurreição. Quem sabe?
Na verdade pouco importa. Morto andei, comi, bebi, falei, joguei, dormi, acordei. Morto vivi e viverei, até a próxima morte ou renascimento. Tenho um lema, que me remete ao produto com o qual minha mãe me entupia na infância, o “Biotônico Fontoura”: “Tudo posso naquele que me fortalece”. Eu sei que isso é o salmo 22. Mas pra mim é um comercial do “Biotônico” e pronto!
Terminei o primeiro parágrafo com uma interrogação, o segundo com uma exclamação, e pode parecer que isso é acidental, obra do acaso. Não. Nada é por acaso. Não importa se um pedaço de mim morreu, ou se só um pedacinho está vivo. Com ele vou me rastejar se necessário, vou fazer com que as células sadias se multipliquem, estarei inteiro em algum tempo e tudo que levarei será a “Amarcord” como Fellini, o diretor de cinema, transformarei o fel em poesia, a dor em melodia, as lembranças em imagens em movimento. Não preciso renascer. Nem preciso estar vivo. “Estarei presente no final dos dias, estarei presente estarei, cantando quem sabe novas melodias que nos seus lábios ressuscitarei”. Há uma grande dor em ser eterno. Mas isso é um grande consolo...
Uma dúvida? Uma resposta! A continuação... Assim são os parágrafos. Assim é a vida. Sem ponto final...
“Nada ficou no lugar”. Canta ao fundo Adriana. Lembra-me Vanuza – isso denota idade – “Hoje vou mudar, vasculhar minha gaveta, jogar fora sentimentos e ressentimentos tolos...”. Juntar as coisas é um hábito humano. Colecionar coisas, economizar dinheiro no banco. Alguns entulham a casa de quinquilharia, outros compram e compram sempre, coisas que nem precisam. Alguns juntam lixo mesmo! A ponto de não conseguirem entram em casa, e isso não é força de expressão.
Somos “juntadores” por natureza... Acumular fez parte do que tornou nossa espécie dominante no planeta, acumular terras, impérios, escravos, mulheres, comida, gordura no corpo – eu que o diga – enfim, tudo.
Bem, eu não junto lixo! Não tenho sequer conta em banco, não gosto de quinquilharias tampouco de qualquer tipo de coleção – não tenho paciência pra isso. Não possuo bens, não compro nada, quase nada. Não tenho terras, impérios nem nada disso. Há! Gordura no corpo! Isso acumulo! Infelizmente. Mas acho que nem me faz mal. O que me destrói mesmo são as coisas daquela música. Ressentimentos contra mim mesmo, decepções, fracassos, empilhados e organizados no meu cérebro. Com tanta merda pra colecionar, eu tinha que colecionar logo tristezas... Muitas... E é incrível como elas se preservam com o mesmo cheiro, temperatura, intactas. Claro! Eu as cultivo... Faço polimento com cera como se fosse um carro esporte. Adubo-as com a minha própria vida, com minha energia vital, tudo pra elas, para as minhas tristezas.
Bem, hoje acordei meio revoltado. Sabe aqueles momentos que você tem vontade de jogar tudo pro alto? Então... Joguei! Quando vi, estava quebrando a golpes de marreta as paredes do jardim suspenso onde as tristezas estavam plantadas. Mandei tudo pro lixo. Do cascalho vou fazer um novo chão. Vai ser agora a lavanderia lá. Sempre que precisar lavar algumas manchas já sei aonde ir. Espero que o clima primaveril não tenha espalhado o pólen daquelas tristezas pelo ar e que de repente elas consigam novo refúgio em algum canto recôndito do meu crânio. Mas acho que isso pode até ser inevitável. Mas no que depender de mim, vou deixá-las secar, até morrerem à míngua do esquecimento.
Ontem a noite não estava bem. Lembro de um episódio de Caverna do Dragão, um desenho animado que acho que muita gente conhece, onde as personagens buscavam sempre um caminho de volta para casa, em todos os episódios. Em um, esse que me lembrei, uma das chances de saída era encontrar um homem. Na busca se depararam com um monstro e tentaram combatê-lo, até descobrir que o monstro era o homem que procuravam. O monstro não falava, era julgado só por sua aparência e pelos grotescos sons que emitia. Havia sofrido um encanto do Vingador, que o transformara em monstro. Era sua prisão sem muros.
Sou esse monstro e os personagens. Busco todos os dias o caminho de volta. Estou preso. Uma prisão sem muros, muito mais poderosa e disciplinadora que o modelo de Foucault. Ela me tira quase tudo. A alegria, mesmo estando ao seu lado. A paz mesmo sem motivos para estar em alerta. A paciência apesar de não haver motivos para zangar-me. A esperança... Mesmo tendo competência para conquistar meus desejos.
Dentro de mim, o jovem cavalheiro mal-humorado, a jovem invisível, o pequeno bárbaro e o valente arqueiro, nunca conseguem dialogar com o monstro sem voz e achar a saída para casa.
Onde andam meus pensamentos? Essa estúpida sensação de impotência e irrelevância que angustiam e espremem meu peito com tamanha força... O Mestre dos Magos bem que poderia apontar um novo caminho. Gandhi dizia que “não há caminho para a paz, a paz é o único caminho”. Faz todo sentido. Como faço para destrancar meu peito dessas grades que eu mesmo criei? Sou o Vingador. Onde será que estão as chaves para essa jaula cada vez menor, para um coração cada vez maior que se enche de amor e amargura, de dor e júbilo, de doçura e fúria, de todas as dicotomias afinal.
Amo tanto vocês... Andréa, Arthur, Amanda, Alex... Meu pai e minha irmã, meus queridos novos amigos que abrilhantaram os últimos anos. Ana e Clayton maiores amigos e mais antigos e que tanto amo. Todos vocês tornaram minha vida repleta de momentos maravilhosos e queria agradecê-los por tanta força que fizeram pra me ajudar, principalmente minha maior amiga, amante e companheira, Andréa, que me empurra vida à frente há uns vinte anos. Sou um humorista. E como a maioria, mal-humorado. Minha alegria é causá-la. Não tenho deixado as pessoas felizes. Perdi o tato, o ânimo, a vitalidade para tal.
Espero que a ferrugem esteja finalmente a corroer as grades e minha liberdade esteja próxima. Pena que sou grande demais para que alguém possa me suportar nos braços. Não tenho esse privilégio. Já basta o sustento material. Entendo que ninguém pode fazer nada. Pena que nem eu consiga. Sempre amei a vida e a eternidade, o infinito... O Mar, que adoraria poluir com as cinzas que sobrarem de mim quando partir.
Não acredito na morte e tampouco sou dado à loucura. Que eu possa em breve retornar desse passeio nessa montanha russa dimensional e que consiga voltar a ser o que sempre fui. Enquanto isso, perdão pela minha ausência. Também não sei onde estou.
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama o meu coração
A tua incerteza voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
(Fernando Pessoa)
Para Cássia Chaves, obrigado!
Que o trabalhador é o novo escravo, eu sei.
Que a favela é a nova senzala, também...
Mas onde fica o novo quilombo?
Marx mostrava – desesperado acredito – como o operário das fábricas era alienado sobre o próprio objeto do seu esforço e como perdia a noção do que produzia e conseqüentemente desconhecia o valor de seu trabalho.
O antigo artesão dominava todas as etapas de produção do objeto produzido, o novo operário não era capaz de sozinho produzir nada. Assim como eu.
Desse modo o indivíduo era totalmente dependente da indústria, tanto para ter renda quanto para consumir. Mas isso já atravessa séculos.
O maior problema, o que mais me corrói, é a alienação da capacidade intelectual. O especialista, uma invenção bem mais recente, é alguém que entende tudo de um pedaço muito pequeno. E praticamente nada do todo do qual aquele pedaço faz parte.
A fragmentação do conhecimento me apavora. Um médico receita um remédio para seu tornozelo e lhe mata por aumentar sua pressão. Um sociólogo analisa a sociedade do ponto de vista do favelado como vítima e esquece que também há demônios entre eles. Um cientista cria uma nova forma de manipulação genética e não conhece nada da história da humanidade e das antigas tentativas.
Não consigo ver uma parte sem analisar o todo. O todo é complexo e possui várias nuances. Pessoas são complexas. Sociedades são complexas. Não há explicação fragmentada para nenhuma de minhas questões.
Não há como entender um enorme quebra-cabeças olhando apenas para uma ou duas peças.
Os sonhos são como piolhos. Não vou ficar somente nessa afirmação enfadonha que mais parece uma frase solta ao esmo, à procura de um sentido filosófico como uma videoarte ou uma arte conceitual qualquer.
– Uma cutucada de leve.
Minha percepção é que a palavra “sonho” é usada de modo a justificar a própria ineficiência, preguiça ou simplesmente para criar em torno de si uma parede protetora, para que o indivíduo não precise cobrar-se e para que os indivíduos que o cercam também não possam cobrá-lo por resultados tangíveis. Quando algo é posto sob o estatuto do “sonho” todos parecem entendê-lo como irrealizável. Desse modo, o sonhador torna-se uma espécie de vítima de si mesmo, ou das condições “externas” que impedem a realização do seu “sonho”.
Sonhos não são desejos. Essa é uma questão semântica que reflete uma das maiores fragilidades humanas, a de assumir a própria condição e o leme de sua vida. Procuramos sempre deixar esse leme aos cuidados de outros: Deus, Acaso, Mercado Econômico, dependendo do tipo de crença de cada um. Mas a minha vida é responsabilidade minha, e de mais ninguém. Os desejos são, pela força da palavra, mais tangíveis e com isso trazem consigo um compromisso, um comportamento que movimenta o indivíduo em busca de realizá-los. Passa a operar no estatuto da fome, da sede, do sexo, coisas sem as quais ninguém sobrevive.
Quando temos um desejo, fazemos de tudo para realizá-lo, para alcançá-lo. Por isso penso no uso dessas palavras com cuidado. Com o cuidado de quem não quer podar-se e nem delegar aos outros as responsabilidades que me cabem. Sonhos são coisas que ainda não foram realizadas, por nenhum ser humano nesse planeta. Se já foi feita, essa “coisa” não é sonho, é desejo.
Deseje, realize, sonhe e tente ser o primeiro a realizar e transformar os sonhos em desejos.
Ontem acordei sem vontade de falar ou de escrever, sem vontade de sair de casa ou de que alguém me visitasse, sem raiva ou esperança, sem dor ou euforia. Ontem foi um dia comum. Foi mais um dos 13.803 dias em que vago por essas plagas. Em que procuro a grande razão, em que critico a razão pura, em que me levanto por necessidade, onde me arrisco ser feliz. Parece tolo ou louco, mas ser feliz, a grande obrigação humana, é pra mim a causa de maior aflição e confinamento, sempre foi, o amanhã que nunca chega, a manhã seguinte que vem revestida de orvalho e de perfume de flores primaverais contra a neblina que embaça minha visão, hipermetropia que me cega de perto, pras coisas mais próximas, pro hoje, pro agora. Vejo sempre além. Só além. Nunca aqui.
Pensar que na infância meu herói predileto era o Drácula. Coisa de criança. Alguns queriam voar, outros atravessar paredes, outros derrubá-las, eu queria resistir a elas. Queria vê-las roídas pelo tempo, queria ser eterno. A eternidade seria o maior castigo para alguém, se não fossem os esquecimentos não sobreviveria nem mesmo aos dias que já contei.
Amanhã! Lá vou eu novamente pro amanhã... Amanhã quero me levantar e deixar o dia me atravessar, sem que eu atravesse o dia, calar a boca e abrir os ouvidos. Deixar a pedra rolar como já propunha há tempos, contra a maldição de Sísifo. É, parece que não há lugar no espaço-tempo pra quem deslocou a lógica da “felicidade” pro amanhã. Mas essa realização é a busca. Não é como pegar um trem com destino a Central do Brasil, é mais como ir para a terra do nunca, polvilhado por pó de fadas. Essa felicidade não existe.
A felicidade que existe é a de me levantar todos os dias sem vontade de me levantar ou de que alguém me visite, movido pela necessidade de planejar “como será o amanhã?” e imaginar as flores e o seu perfume, ficar mau humorado com a música alta do vizinho, com a fumaça do lixo queimado na redondeza, e com todas as coisas que me irritam... É saber que tenho lindos sorrisos em minha direção, que por algum motivo mais insano que eu há quem me ame desta forma e que serei sempre assim, vítima feliz e consciente do sisifismo. Sim, feliz! Fazer o quê?
Hoje, como sempre, apesar de maquiar-se de democrático, o conhecimento continua a serviço do poder, monárquico de uma outra forma, dogmático e ritualista de outra, sem deixar com que as idéias populares, ou verdadeiramente inclusivas tenham vez. Continuam a serviço de si, propagando a classe dominate desses saberes e excluindo da mesma forma a massa popular, certas vezes quero crer, por pura letargia, mas de qualquer forma, sob a hedge do egoísmo, o mais antigo e o maior demônio da humanidade.